Pesquisadores, discentes e comunidade constroem novos paradigmas fundiários
Desconstruir a lógica de que a regularização fundiária termina com a titulação da moradia, reescrever a noção de propriedade com parâmetros brasileiros, inclusive amazônicos, e não reforçar a herança do colonizador europeu, compartilhar o conceito de função social da cidade para alunos do ensino fundamental e médio e fortalecer a participação da universidade nas comunidades para debater os desafios urbanísticos, mercadológicos e de segurança sobre a posse da terra. Esses temas nortearam os debates do I Encontro dos Saberes da Regularização Fundiária na Amazônia, realizado no Auditório Setorial I, no Campus Guamá. O evento terminou no dia 12 de junho, com a participação de 70 pessoas, entre pesquisadores de universidades públicas e privadas e de institutos de educação; servidores públicos municipais, estaduais e federais; gestores do governo do Estado do Amapá; representantes dos Grupos de Trabalho do Projeto Moradia Cidadã em Tomé-Açu, Capitão Poço e Nova Esperança do Piriá e de lideranças comunitárias.
O evento foi organizado por Kelly Alvino, coordenadora do Projeto de Extensão Compartilhar os Saberes da Regularização Fundiária, a qual é assistente administrativa da Comissão de Regularização Fundiária da Universidade Federal do Pará (CRF-UFPA), tendo suporte institucional do Programa de Bolsas de Extensão Universitária (Pibex). Na abertura, ela destacou a importância do compartilhamento dos múltiplos saberes fundiários implementados visando consolidar novos paradigmas sobre o planejamento urbano e o uso e a ocupação do solo amazônico, assim como para a construção da cidade legal e da cidadania.
Em seguida, Myrian Cardoso, da Faculdade de Engenharia Sanitária e Ambiental (Faesa-UFPA), falou sobre os desafios históricos colocados para a Amazônia urbana com o seu mosaico de terras públicas e privadas em um território de diferentes escalas, estágios e múltiplos traços de ocupações. “A regularização é uma política pública com uma engrenagem que envolve múltiplas dimensões, processos graduais, articulados e constantes. A regularização não termina com a entrega do título às comunidades, ela é apenas uma etapa dos processos graduais no planejamento do desenvolvimento urbano”, assinalou.
Questionamentos - Por sua vez, José Júlio Lima, professor da Faculdade Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará (FAU-UFPA), ressaltou que a irregularidade ou ilegalidade atinge mais de 60% dos lotes urbanos no Brasil. Essa realidade sinaliza os desafios da regularização nos seus aspectos urbanísticos, mercadológicos e na percepção de segurança sobre a posse da terra. “A promoção de títulos de propriedade individual não resolve os problemas de transformação das propriedades em mercadorias e da substituição gradativa dos moradores mais pobres por moradores de nível econômico mais elevado”, questionou. Ele acentuou que a percepção de segurança sobre a posse da terra se altera entre os moradores, mesmo quando os títulos sejam assegurados, pois há o medo da expulsão, da violência contra a integridade física do morador, além da especulação imobiliária que sempre ronda essas comunidades. “Estes e outros pontos geram conflitos entre o que é público e o que é privado e precisam ser mais estudados”, argumentou.
Sociólogo e professor do curso de Direito da Escola Superior Madre Celeste, Thales Ravena Cañete, falou sobre a importância da decolonialidade, tema que busca descontruir e reconstruir um pensamento sem a hegemonia global europeia ou americana nas relações políticas, econômicas, culturais, sociais sobre o conceito de propriedade, o uso e a ocupação do solo. “O conceito de propriedade e o debate sobre o que é público e o que é privado foram edificados na memória brasileira a partir do pensamento do colonizador europeu e americano. É necessário romper com esta lógica e reconstruir novos saberes para serem compartilhados, principalmente na Amazônia, uma vez que o conceito de propriedade foi influenciado, também, pelas forças políticas e econômicas do Sul e Sudeste brasileiros. O seminário é um passo importante para reconstruir esse novo olhar e propor novos paradigmas sobre a função social da terra e da moradia para a Amazônia e o Brasil”, afirmou.
Saberes - O tema Projeto Cidade Educadora, um novo olhar sobre regularização fundiária na educação, foi apresentado por Edivânia Alves, socióloga e professora do Instituto de Educação Matemática e Científica (IEMCI). “A Base Nacional Comum Curricular aponta a importância de trabalhar a transversalidade sobre o papel da cidade e o direito de acesso à terra desde o ensino infantil, fundamental e médio por meio das disciplinas de História e Geografia. É fundamental irmos além das disciplinas de Arquitetura, Direito e Assistência Social, entre outras. Empoderar esses alunos para pensar a sua casa, o seu bairro, a sua cidade e o Brasil e formar cidadãos. Assim, você promove uma educação ampla e cidadã, debate como houve uma apropriação da terra por grupos econômicos e demonstra como construir uma cidade para todos. Estamos trabalhando a construção da cidadania com estes estudantes”, asseverou.
Em seguida, João Daniel, professor do Instituto de Ciências Jurídicas da UFPA, falou sobre o Projeto Conciliação e Mediação na Regularização Fundiária de Interesse Social nas Terras Ocupadas da UFPA, e Maurício Leal Dias, da Faculdade de Direito da UFPA, abordou os desafios da capacitação para implementar a regularização fundiária de interesse social, que consiste no conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam à regularização de assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de modo a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Encerrando o primeiro dia do seminário, o jornalista Kid Reis, assessor colaborador da CRF-UFPA, fez um balanço das políticas de comunicação desenvolvidas nos projetos Moradia Cidadã, no nordeste paraense, e de Regularização Fundiária e Cidadania, na cidade de Serra do Navio, no Amapá.
Serenidade - No segundo dia do seminário, Joseane Corrêa, assistente social do Núcleo de Prevenção e Pacificação de Conflitos Policia Civil na Terra Firme, ligado ao governo do Estado do Pará, e a professora Myrian Cardoso falaram sobre os resultados do perfil de demanda de regularização e mediação de conflitos nos bairros Terra Firme, Guamá e Marco. Nestes anos, a CRF-UFPA produziu mais de 7.773 cadastros de moradores, consolidou 3.154 processos, alcançou 2.500 títulos assinados pela comunidade e entregou 1.500 documentos para as famílias, informou Myrian Cardoso.
Os dados da CRF-UFPA revelam, ainda, que 90% dos atendimentos de conflitos feitos estão relacionados à divisa do lote, avanço da laje e abertura de janela, entre outros, revelando que os desafios fundiários vão além da entrega do título. “Faz-se necessário aprofundar o debate sobre a complexidade do que é o planejamento urbano, pois existe, também, uma arquitetura popular, que é de sobrevivência e não de luxo. Não é tendência nem espetáculo. Não pode ser destruída para impor o que o pensamento colonizador acredita ser estético e belo cultural e economicamente ”, observou.
Além disso, os números da CRF-UFPA mostram que 45% dos conflitos existentes somente na Terra Firme estão relacionados à delimitação de área; 20%, conflitos sociais; e 35% precisam de orientações para acessar programas sociais visando à melhoria habitacional. Para Joseane Corrêa, assistente social da Unidade, a parceria construída com a CRF-UFPA ganhou uma dimensão pelo olhar transversal para reduzir essas vulnerabilidades sociais, urbanas, habitacionais e promover a paz nos bairros e nas diversas comunidades, com base no tripé ensino, pesquisa e extensão.
Patrimônio - O último painel do seminário foi ministrado por Marlene Alvino, presidente da CRF-UFPA, e Lêda Coutinho, engenheira civil, que abordaram a gestão dos bens imobiliários da Universidade. “Desenvolvemos uma metodologia para gerenciar o patrimônio da UFPA no Pará, aprimoramos procedimentos de avaliação e compartilhamos conhecimentos para alcançar os avanços nestes anos. Em 2002, o inventário patrimonial equivalia a R$ 5,9 milhões. Em 2018, o patrimônio saltou para mais de R$ 890 milhões e, em 2020, a expectativa é superar R$ 1 bilhão, pela eficiência da gestão do patrimônio público. O Tribunal de Contas da União (TCU) recomendou o compartilhamento dessa metodologia com outras universidades brasileiras”, declarou a presidente da CRF-UFPA. O evento encerrou com a participação do Boi Marronzinho e do Instituto Amazônia Cultural, que promovem ações culturais inclusivas no Bairro Terra Firme. O II Encontro dos Saberes da Regularização Fundiária na Amazônia está previsto para meado do 2020.
Texto e fotos - Kid Reis – Ascom- CRF-UFPA
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