Pesquisadores e estudante da UFPA avaliam cenário nacional da educação de pessoas surdas
Chama-se pessoa surda aquela que é portadora de surdez e que possui uma identidade, uma cultura, uma história e uma língua próprias. Para o(a) surdo(a), a língua materna, ou seja, a primeira língua é a Língua Brasileira de Sinais – Libras; e a segunda, a Língua Portuguesa, como modalidade escrita e/ou oral caso se considere surdo(a)-bilíngue. Mas esse processo de alfabetização da pessoa surda, na prática, não é tão simples. O(A) surdo(a) necessita da acessibilidade em qualquer lugar, como no ambiente doméstico, no trabalho, nos eventos, nas igrejas, e principalmente, nas escolas e nas universidades. Dia 26 de setembro, no Brasil, é o Dia Nacional dos Surdos.
Recentemente, houve uma conquista para a comunidade surda brasileira: a alteração na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), por meio da lei nº 14.191, de 3 de agosto de 2021, destacou que “entende-se por educação bilíngue de surdos, a modalidade de educação escolar oferecida em Língua Brasileira de Sinais (Libras) como primeira língua, e em português escrito, como segunda língua, em escolas bilíngues de surdos, classes bilíngues de surdos, escolas comuns ou em polos de educação bilíngue de surdos, para educandos surdos, surdo-cegos, com deficiência auditiva sinalizantes, surdos com altas habilidades ou superdotação ou com outras deficiências associadas, optantes pela modalidade de educação bilíngue de surdos.” Os professores da Faculdade de Letras Estrangeiras Modernas (Falem) do Instituto de Letras e Comunicação (ILC) da Universidade Federal do Pará (UFPA), comentam o assunto.
“Da minha perspectiva, o Brasil contribui para a educação de surdos. Mas antes tínhamos muitas dificuldades, as pessoas surdas não se movimentavam, não se mobilizavam para lutar por seus direitos. Durante muito tempo, foi assim. Aos poucos, em um processo muito demorado, a comunidade surda despertou para se ver como possuidora de direitos e passou a reivindicar esses direitos ativamente, mostrando que a sociedade brasileira deveria ver e valorizar as pessoas surdas como pessoas capazes, ou seja, terem representatividade. Então, isso caminha a passos lentos, mas com uma série de conquistas muito importantes, como a promulgação de leis e decretos. A legislação que garante acesso à tradução e interpretação de Libras, por exemplo, e várias outras conquistas têm se proliferado nesse sentido. Mas ainda não temos o cenário ideal, ainda não atingimos isso. A lei recentemente aprovada trará um avanço muito grande no sentido de oferecer a opção pela melhor forma de educar as pessoas surdas”, considera a coordenadora do curso de Licenciatura Letras/Libras do ILC/ UFPA, Giselle de Mello.
Para o professor Waldemar Cardoso Junior, diretor da Falem/ILC/UFPA, a Lei 14.191/2021 é mais uma que favorece a educação bilíngue de surdos. “Na prática, sabemos que a educação bilíngue de surdos está aquém daquilo dito em leis, decretos... Precisamos investir na formação de professores bilíngues de surdos para anos iniciais. Alfabetizar surdos envolve desenvolver as habilidades de ler textos não verbais e verbais em Libras e em Português escrito e desenvolver habilidades metalinguísticas da Língua Portuguesa, sem uso da linguagem falada. É um processo complexo e desafiador para professores e alunos. Nesse processo, a Libras é fundamental, é por ela que a criança surda apreende as coisas do mundo e trabalha a função simbólica por meio das linguagens em diversas situações sociocomunicativas”, explica.
Mãos que falam - A Libras é como se fosse a "fala" dos(as) surdos(as) que se comunicam com as mãos e com o corpo no espaço. “É necessário que a criança surda possa expressar seus saberes em Libras, para desenvolver vocabulário, esquema corporal, sintaxe espacial e formação de textos na organização das ideias, e elabore seus discursos em contextos socioculturais”, complementa o professor. A escrita do Português deve ser desenvolvida por meio desse trabalho com aspectos linguísticos, cognitivos e sociais da Libras.
“Por isso precisamos de um curso de graduação para formar professores bilíngues de surdos para os anos iniciais. Da educação infantil até o 5o ano escolar, é um momento importante de desenvolvimento dos aspectos biopsicossociais das crianças surdas, que impacta diretamente na vida escolar do ensino fundamental e ensino médio, da educação básica”, avalia Waldemar.
O curso de Letras Libras da UFPA foi implantado em 2015. Por ser no período intensivo, ou seja, com aulas que ocorrem nos meses de janeiro/fevereiro e julho/agosto, há uma demanda considerável de alunos dos interiores do estado do Pará, como Abaetetuba, Barcarena, Salinópolis, Bragança, entre outros, que se deslocam de suas cidades nesses períodos para a capital, Belém. “Isso possibilita que a formação de professores de Libras possa chegar a diversos lugares do nosso estado. Temos, inclusive, alunos quilombolas”, destaca o professor.
Alunos da faculdade que são surdos têm acessibilidade linguística e comunicacional de intérpretes educacionais de Libras. Há projetos de extensão e pesquisas sobre educação de surdos, o que implica a integração de todos em um ambiente socioeducativo e inclusivo por meio do ensino, da pesquisa e extensão universitária.
A professora Giselle de Mello acrescenta: “O trabalho da Falem é muito importante. Lá, os alunos são recebidos tanto por professores ouvintes bilíngues quanto por professores surdos bilíngues. A partir do contato marcante com esses professores, o aluno internaliza os conhecimentos necessários para a sua futura atuação profissional no ensino de jovens surdos da educação básica. Isso propicia a melhoria da qualidade da educação como um todo em um futuro próximo”.
Cenário ideal - Segundo a coordenadora, a legislação brasileira n.14191/2021 não fala em dupla alfabetização. “O meu posicionamento quanto a essa questão é de discordância em inserir o aluno surdo em uma classe regular dita “inclusiva” em um turno e o aluno frequentando o AEE- Atendimento Educacional Especializado no contraturno. O ideal é diferente disso. O ideal é a existência de Escolas Bilíngues de Surdos, onde o aluno surdo possa estudar e se formar adequadamente em um processo análogo ao que acontece com os alunos ouvintes nas escolas para ouvintes”, opina Giselle.
“Mudança, investimento e compromisso são fundamentais para a construção de educação bilíngue de crianças surdas”, assinala o professor Waldemar Cardoso. “Sabemos que há um processo de aquisição da linguagem de crianças surdas, diferente da de ouvintes. Por isso é fundamental o curso de graduação de professor bilíngue de surdos para os anos iniciais, porque é necessário ser fluente em Libras, conhecedor da cultura surda, estudar a pedagogia da diferença, conhecer aspectos da alfabetização de surdos, estudos de letramento de crianças surdas, há estratégias de ensino e aprendizagem, sem falar da dimensão afetiva, social, psicológica e familiar envolvida da educação infantil ao 5º ano escolar de surdos”, enumera. “Este profissional será fundamental para que as crianças surdas cheguem ao ensino fundamental maior, do 6o ao 9o ano, com as habilidades necessárias para prosseguirem na educação básica, rumo ao ensino superior”.
Trajetória de sucesso - O graduando Renan Silva, do sexto semestre do Curso de Educação Física da UFPA, é surdo e relata seu percurso de estudos até o ensino superior. “Sou indivíduo surdo, minha deficiência é de grau bem profundo. Para mim, a língua materna é a Libras e a segunda é Língua Portuguesa como a modalidade escrita e oral, por isso me considero surdo bilíngue, uma pessoa normal como outras, porém necessito de acessibilidade”. Desde o início do seu percurso educacional, ele se dedicou muito aos estudos e, agora, na UFPA, conta com um recurso indispensável: “tem a acessibilidade admirável dos tradutores e intérpretes de Libras realizada pela Coordenadoria de Acessibilidade da UFPA (CoAcess) em salas de aula, no ginásio, nos institutos entre outros locais específicos”, aponta.
Segundo o estudante, ao longo da pandemia, as estruturas da Universidade mudaram muito com a educação a distância, contudo o reforço do acompanhamento dos intérpretes de Libras da CoAcess foi continuado no ensino remoto. “No começo da pandemia, foi assim, teve pequenos prejuízos, porém me adaptei ao uso de tecnologias. Depois de alguns meses, fui avançando nos meus estudos, fui bolsista de Pibic e, depois, Pibex, visto que elaborei um projeto de extensão. Em todo o tempo pandêmico, me esforcei novamente, o que demonstra a capacidade de um surdo para desenvolver e realizar o seu sonho de formatura”.
Sobre a alteração na LDB, Renan Silva afirma que há uma explosão de alegria entre a comunidade surda. A aprovação do posicionamento da Educação Bilíngue para os surdos na LDB é uma conquista. “É interessante saber da dupla alfabetização na língua primeira dos surdos, Libras, e Escrita de Sinais, chamada – SW. Isso pode alterar alguma coisa na LDB, dependendo das propostas pedagógicas para surdos se desenvolverem cognitivamente e intelectualmente. É de grande relevância ter a garantia de dupla alfabetização de surdos na sua língua própria e alterada na LDB”, conclui.
Serviço
Para acessar a íntegra da nova lei, clique aqui.
Para conhecer mais sobre o curso Letras – Libras da UFPA, acesse: http://www.ilc.ufpa.br/index.php/letras-libras-e-lingua-portuguesa.
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Texto: Jéssica Souza – Assessoria de Comunicação da UFPA
Arte gráfica: Ascom UFPA
Foto: Arquivo Pessoal
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